quinta-feira, 10 de novembro de 2011

“Estou tão envolvido na reportagem que almoço, durmo, sonho com o tema"






Entrevista ao jornalista Pedro Coelho por Andreia Cruz

Depois de mais de 20 anos de carreira, o repórter da SIC ainda tem um sonho, regressar ao cenário de guerra. A família fá-lo adiar esse momento. Pedro Coelho é viciado no trabalho, entrega-se de corpo e alma às suas histórias. Rosa Brava, a reportagem mais mediática de sempre, não foi a que mais o marcou. 


As olheiras denunciam o intenso ritmo de trabalho que tem tido nos últimos tempos. Aproxima-se o dia da exibição da Grande Reportagem, na qual anda a trabalhar há quase dois meses. Na recta final Pedro Coelho passa grande parte dos seus dias na SIC. Foi durante uma pausa no trabalho que nos recebeu nos estúdios de Carnaxide para duas horas de conversa.
Aos 45 anos não pensa “arrumar as botas”. Abandonar a profissão não faz parte dos seus planos, não agora, que acha “estar no ponto”. Trocou Montemor por Lisboa em busca do sonho de ser jornalista. Depois de ter passado pela Rádio Comercial e pela Rádio Correio da Manhã, entrou para a SIC, donde não mais saiu. A rádio foi a sua primeira paixão mas hoje não se vê a trabalhar fora da televisão. A imagem é algo que o fascina.

Como é o Pedro Coelho quando a câmara se desliga e o trabalho termina?
Esforço-me muito em tudo aquilo que faço. Esforço-me para ser um bom pai, para ser um bom marido, para ser um bom amigo. Gosto muito de estar com os amigos. Não tenho muitos, porque não me entrego às pessoas, tenho receio de me entregar. Eu sou bom a interpretar pessoas, a observá-las, mas a ter de lidar com elas…

«Essa alma alentejana é a minha alma.»


Por isso prefere o trabalho de reportagem que acaba por ser mais solitário.
É claramente mais solitário, mas prefiro de longe a todos os outros. No fundo sou eu e a história. O que me interessa é a história. A solidão está muito marcada em mim, eu acho que é uma coisa muito alentejana. Tem a ver com a minha identidade.

Considera-se um típico alentejano?
A identidade alentejana tem muito a ver com uma necessidade desesperada de combater a vida, no bom sentido. Nós entregamo-nos à vida com um propósito claro, podemos ter poucos recursos, mas tentamos com esses poucos recursos fazer o mais possível. E acho que essa alma alentejana é a minha alma. É uma alma de alguém que tenta vencer, que faz tudo para o conseguir e fá-lo por caminhos naturais.

Nasceu em Montemor. Como é que caracteriza o ambiente em que cresceu?
Montemor é uma terra pequenina e era muito mais pequenina há 45 anos. Na altura estava muito longe de Lisboa. Demorávamos três horas, no mínimo, a chegar. Havia cinema duas vezes por semana. Eu era um cliente religioso do cinema. Ia geralmente ao sábado à noite com o meu pai.

Ia ver o quê?
Via filmes de cowboys, que era o que havia na altura, não havia mais nada. De vez em quando havia à quinta-feira uns filmes mais intelectuais.

Não era muito simples aceder aos produtos culturais.
Não. Lisboa era outra dimensão. Os filmes que estreavam em Lisboa nós víamos cinco, três meses depois, na melhor das hipóteses. Lembro-me que comecei a ver aqueles filmes do Coppola. Percebia que eles estreavam porque era um leitor compulsivo do Expresso. Quando cheguei a Lisboa aos 18 anos caí literalmente de pára-quedas.

Aventura em Lisboa
Tinha alguma ansiedade em chegar à capital?
Ansiedade e receio…

Porquê receio?
Porque eu sabia que estava a anos-luz de distância da cidade. Quando chego, não tenho nenhum suporte. Fico literalmente sozinho, com uma senhora de 83 anos. Ela alugava quartos e fiquei em casa dela. Vivia em frente da faculdade, só tinha de atravessar a rua. Isso era óptimo, mas era péssimo. Era um percurso confortável. Tive muita dificuldade em sair da minha zona de conforto.

A adaptação foi um pouco difícil.
Foi, foi muito complexo. Estava ansiando para que chegasse a sexta-feira para me vir embora para Montemor. Fazia esta corrida doida…assim que chegava sexta, lá ia eu...

Quando é que se sentiu confortável na cidade?
Fui-me sentindo aos pedacinhos, mas pedacinhos muito pequeninos. Fui para o 3º ano da faculdade e o meu pai comprou-me uma casa em Lisboa. Ficava igualmente próxima da faculdade mas não tão próxima. Fiquei um ano totalmente sozinho. Foi um ano de descoberta de muita coisa. Foi uma experiência muito radical.
Continuava a ir a Montemor, mas já não ia todos os fins-de-semana.

«Eu queria mesmo fazer rádio. Na altura podia escolher, agora há mais dificuldade.»


Começou a cortar o cordão umbilical.
Comecei a cortar no 3º ano da faculdade. O 1º e 2º foram muito presos à senhora de 83 anos, no 3º ano comecei a cortar. Mas nunca me entusiasmou muito a faculdade. Sobretudo nos primeiros dois anos, o curso não me estava a atrair. Não estava a gostar mas não desisti. Estava consciente do esforço financeiro que os meus pais faziam para eu estar em Lisboa. A partir do 3º ano houve ali uma viragem completa. Comecei a interessar-me muito mais pelo curso. Comecei a querer fazer um trabalho sobre rádios locais como tese de licenciatura.

Paixão pela rádio
Foi na rádio de Montemor, a Rádio Almansor, que começou o seu percurso no jornalismo. A rádio fascinava-o mais do que a imprensa ou a televisão?
Claramente o que mais me fascinava era a rádio. Acho que tem muito a ver com o facto de ter começado na rádio local. Foi uma experiência tão intensa. Bebi aquilo de uma maneira tal que pensei: “Eu quero fazer isto para o resto da minha vida.” Tanto assim foi que quando terminei o curso o meu actual patrão convidou-me para trabalhar na Exame e eu disse: “Não, eu quero é fazer rádio.”

Foi um acto corajoso da sua parte.
Eu queria mesmo fazer rádio. Na altura podia escolher, agora há mais dificuldade.

Não teve dúvidas?
Não tive dúvida nenhuma. E fui para o incerto, era um estágio curricular na Rádio Comercial, não fazia a mínima ideia de que ia conseguir lá ficar.

Arriscou.
É verdade. Se fosse hoje não o faria, certamente. Mas os meus 20 anos e a disponibilidade permitiram-me isso.

A transição da rádio para a televisão foi complicada?
É diferente, claro. Numa das primeiras peças que fiz eu escrevia, escrevia e não tinha imagens para aquilo. Fiz uma aprendizagem aqui (SIC). Foi muito bom porque na altura estávamos muitos na mesma situação. Havia muitos de rádio e havia poucos de televisão. Viemos para aqui (SIC) aprender com o Emídio Rangel e com uns franceses que nos vieram dar formação.


«Quando termino uma reportagem fico à espera do ecos positivos e dos negativos, para os contrariar.»


O Emídio Rangel foi uma referência para si?
O Emídio Rangel foi até hoje a pessoa que profissionalmente mais me marcou a todos os níveis, bons e maus. Com o Emídio Rangel aprende-se de tudo, a ser excelente e a ser menos bom.

Em concreto o que é que aprendeu com ele?
Aprendi a estar, aprendi a desembaraçar-me, a agir... tudo o que tem a ver com a rapidez de actuação foi com ele que aprendi. Ele estimula, tem uma capacidade de nos fazer acreditar e isso é muito importante no jornalismo.

O Emídio Rangel também o ajudou com a leitura.
Ele uma vez disse-me assim: “Tu tens jeito para isto mas não sabes ler.” Colocou-me numa cabine de edição e perguntou-me: “Porque é que tu lês tão pausadamente? Adquire um ritmo teu mas não leias tão pausadamente.” Depois leu-me o texto que eu tinha escrito. Estive ali dez minutos com ele e nunca mais fui o mesmo a ler.

A Reportagem
Enquanto profissional qual é o trabalho que mais o preenche?
Claramente a reportagem. Advém daquela vontade de saber mais, de mergulhar na realidade. Nada me permite ir tão fundo quanto a reportagem. Estou a fazer uma grande reportagem há quase dois meses. É uma história muito forte. Estou de tal maneira envolvido com isto que almoço, janto, durmo, sonho este tema.

E quando termina uma reportagem, fecha a porta?
Fico à espera dos ecos positivos e dos negativos, para os poder contrariar. Mas agora já estou muito melhor. Não fico frustrado se não funcionou do ponto de vista das audiências. Dantes ficava frustrado se não tinha 35 ou 40 telefonemas a dizerem bem ou mesmo a dizerem mal...

Porquê essa frustração?
O grau de entrega é tal que precisa de ter reconhecimento. Curiosamente estou cada vez mais sensível às coisas menos boas que dizem do meu trabalho. Sensível no bom sentido. Estou muito mais aberto a críticas. Houve uma altura, confesso, em que eu achava que fazia tudo bem feito.

Essa atitude não é perigosa?
Sim, é muito perigosa. Foi muito bom para mim ter vindo para uma equipa de trabalho onde há extraordinários repórteres com quem tenho muito a aprender. É um conselho que dou a qualquer pessoa, não fechemos os olhos aos trabalhos dos outros. O meu trabalho melhorou à conta disso.

Suporte familiar
Dedica-se a 100 por cento ao trabalho?
Só não é a 100 por cento porque não me desligo da família. Não quero mesmo, faz-me muita falta, equilibra-me muito. É uma alavanca.


«Ser jornalista é termos uma missão. Temos a obrigação de participar na construção de uma sociedade maior.»



A sua esposa também é jornalista. Ambos devido à profissão estão algumas vezes ausentes. Os vossos filhos não exigem a vossa presença?
O tempo que estamos com eles é muito saudável. Ultimamente tenho estado muitas vezes fora. Mas eles habituaram-se a ver o pai sempre a trabalhar, eu trabalho muito em casa. Mas há um momento que eles sabem que é para eles. Quando o tempo melhora vamos andar de bicicleta, jogar ténis, vamos passear os quatro. Estamos muito tempo juntos nas férias, mesmo que eu passe as férias a trabalhar.

E são compreensivos?
Entendem. Raramente oiço: “Papá estás sempre a trabalhar e não tens tempo para nós.” Eles sabem que há um momento para tudo e que o pai está a trabalhar porque tem de trabalhar.

Eles vão seguir as pisadas dos pais?
O problema é esse... o mais novo acho que não. O mais velho é um jornalista. Não consegue pensar em ser outra coisa. Vai com a mãe para o Parlamento e faz uma notícia, isto aos dez anos. Vem para aqui e começa a esboçar uma reportagem.

Isso assusta-o?
Bastante. Nós não temos o direito de o empurrar para o jornalismo. Ele vê-me a trabalhar em casa e lê as minhas coisas. Aquilo tem influência directa sobre ele. Vai às vezes com a mãe e vê como a mãe trabalha e a rapidez com que concretiza as coisas, e aquilo entusiasma-o de uma maneira inacreditável.

Rosa Brava, a Grande Reportagem mais vista de sempre, foi o trabalho que mais o marcou?
Não, de todo. Infelizmente é talvez aquele que é mais conhecido mas está longe, muito longe de ser o que mais me marcou.

Mas teve um grande impacto.
Teve porque ela é claramente um animal de televisão. Teve um impacto social interessante, descobriu-se que existiam muitas Rosas espalhadas pelo país, não foi um trabalho indiferente.

Então qual foi o trabalho que mais o marcou?
Este trabalho que estou a fazer agora vai ser claramente um dos que mais me vão marcar, vai ficar entre os meus cinco mais. Daqueles que já estão feitos e legitimados há um que me marcou bastante, o trabalho que fiz em duas cadeias portuguesas, a que dei o nome de “Código de barras”. É uma grande reportagem que mexeu muito comigo, no sentido em que me desafiou. Eu em puto tinha um receio enorme de cadeias. Enquanto jornalista, ganhei coragem e fiquei a viver numa cadeia durante nove dias. Hoje não tenho nenhum problema em entrar numa cadeia.


«Nunca mais voltei ao cenário de combate e eu tenho essa vontade.»


Metade jornalista metade professor
O que significa ser jornalista?
Ser jornalista é termos uma missão. Temos a obrigação de participar na construção de uma sociedade maior. Se eu puder fazer uma coisa que tenha um impacto maior sobre a sociedade, vou ao menos entregar o meu esforço e a minha dedicação a uma coisa que seja verdadeiramente importante. Eu trabalho muito mas trabalho com tanto gosto. Sabe o que é nós acordarmos de manhã e termos vontade de vir trabalhar?

Isso é um privilégio.
É claramente um privilégio. Vir para aqui e pensar que vou fazer uma coisa que me dá gozo, que vou criar uma história de raiz, vou decidir o que vou fazer. Isto é um privilégio único.

Para além de jornalista é professor universitário. A docência também o encanta?
A única coisa que me vejo a fazer que não seja isto é mesmo dar aulas. Gostava de poder conciliar as duas coisas a sério, ter o tempo dividido, 50-50. Para isso preciso de acabar o meu doutoramento.

Que conselhos costuma dar aos seus alunos para vingarem nesta profissão?
Fiquem convencidos de que isto exige, sobretudo de quem está a começar, uma entrega muito grande. É muito difícil começar na profissão agora, mas também era muito difícil há 20 anos. Havia muito poucos licenciados em jornalismo. Foi muito complicado, nós éramos maltratados, éramos os tipos da faculdade que íamos roubar o pão dos tarimbeiros. Nós não tínhamos a experiência. Saíamos de um curso em que havia zero de cadeiras práticas, foi muito difícil. Conheço colegas meus que não aguentaram e desistiram. Se eu tivesse uma atitude de desistir, hoje não estaria aqui.


«Gosto muito de entrevistar pessoas em situações limite.»


Depois de mais de 20 anos de carreira o que é que ainda não fez e tem vontade de fazer?
Há muita coisa que eu ainda não fiz e tenho vontade de fazer, em concreto uma. Já estive há muitos anos, há 20 anos, a fazer a cobertura da guerra na Jugoslávia. Fui sozinho, eu e o gravador. Nunca mais voltei à guerra. Estive em cenários muito semelhantes, mas nunca mais voltei ao cenário de combate e eu tenho essa vontade.

Não tem receio?
Se dissesse que não tenho receio estava a ser tonto, porque o receio é natural no homem. Mas há barreiras que nós temos de ultrapassar e essa é uma barreira que eu vou querer ultrapassar.

O facto de ter duas crianças e uma mulher em casa não o preocupa?
Esse é o lado mais complexo da história, porque eu não sou dono da minha vida. Não sou a criança que foi para a Jugoslávia... Estou a viver um momento que do ponto de vista psicológico não teria problemas em ir, mas depois está o lado familiar que pesa bastante.

Não há ninguém que gostasse de entrevistar?
Há. Gosto muito de entrevistar pessoas em situações limite. Nós aprendemos tanto quando entrevistamos alguém numa situação limite. Eu já tive esse privilégio. Fiz uma reportagem sobre os frades cartuxos…uma pessoa que está numa clausura daquelas está numa situação limite, tal como um recluso que se portou mal e está na solitária.


«Não tenho dúvidas nenhumas de que agora estou no ponto.»

Não é complicado gerir as suas emoções e as emoções dos entrevistados?
Aí é que se vê o quão envolvidos estamos na missão. Acho que o envolvimento na missão é ter a consciência de que aquela pessoa em concreto é um objecto de trabalho. Se eu fosse envolver-me com todas as pessoas com as quais interajo profissionalmente, não teria estofo psicológico para aguentar a minha vida. Há um limite que eu não posso cruzar, sob pena de perder todo o distanciamento e a solidez psicológica que eu preciso para trabalhar.

O jornalismo foi uma ferramenta que encontrou para satisfazer a sua curiosidade?
Foi uma coisa natural em mim, eu não me vejo a fazer outra coisa que não esta. Eu continuo com uma vontade imensa de querer saber mais.

Mesmo depois de mais de 20 anos de carreira?
Sim, mesmo depois disso. Eu acho estranho quando no interior das redacções se pensa: “Tu tens 45 anos, já estás velho para isto.” Eu estou muito mais preparado hoje para ser jornalista do que estava há 20 anos, quando comecei.

Agora está no ponto.
Não tenho dúvidas nenhumas de que estou no ponto. Contudo tenho a plena convicção de que a partir de agora é sempre a descer. Não por mim, porque eu não vou fazer nada para que assim seja. Pelo contrário, eu não vou arrumar as botas. Vai ser sempre a descer porque é assim que o sistema impõe que seja. Vejo gente a crescer ao meu lado, e ainda bem que crescem, vejo gente chegar, e ainda bem que vêm.

Sem comentários:

Enviar um comentário